E diz o escriba:
Confesso que não me lembro muito bem das Pontes de Madison County. Das brumas saem as ditas, que achei belíssimas, o meu querido Clint, último e fiel depositário de um certo cinema e tipo de actor, o desempenho intocável de Meryl e a sua mão crispada na porta de um automóvel.
Deve ser difícil encontrar quem, caso se tenha sentido tocado pelo filme, não tenha encarnado numa ou noutra personagem: quem não tenha sentido a chuva a escorrer-lhe pelo rosto, enquanto franzia os olhos para olhar, guardar na sua memória (fotográfica) a mulher que, a dois passos, contempla pela última vez ... ou quem, num espaço recolhido, familiar, definido, mas circundado pela indefinição, sem contornos, pelo embaciamento causado pela chuva (que o toca a ele, mas não a ela) crispa a mão na porta enquanto pesa e avalia e decide...
Juízos de valor? Fazemos sempre. Opiniões a favor? Temos, não é possível evitar. Não conseguimos não ter, tal como não resistimos a encantar-nos com tudo o que esteja relacionado com as nossas mais secretas, mais intimas, mais humanas, mais frágeis aspirações. Os filmes que nos ficam mais na memória são sempre aqueles que nos oferecem a imensa potencialidade cinematográfica de uma paixão sumptuosa, de um amor (seja qual for a sua forma), de nos ser dado tudo incluindo a escolha dilacerante entre as várias partes de nós.
O fulcro da questão é o habitual... - deixar ou não um amor tranquilo por uma paixão avassaladora. Em trinta anos de profissão ouvi descrever as duas decisões e os trajectos subsequentes. Há quem fique por cobardia, pelos outros, por considerar que a paixão não resistirá ao quotidiano e um dia se assemelhará ao afecto deixado para trás. Há quem descubra não estar talhado(a) para a vida de casal, embora tenha pressionado o outro para o (a) seguir. Muitos dos julgamentos de valor a que assistimos partem do pressuposto que viver a paixão à custa de tudo o resto é quase uma "obrigação ética". Não concordo e a História também não. Acho perfeitamente legítimo resistir às consequências práticas de uma paixão e aos 58 já percebi que somos muito injustos para o amor tranquilo, chegamos a confundi-lo com monotonia e desistência!
Ela diz a certa altura que foi pela lembrança dele que conseguiu permanecer na quinta tanto tempo. Admissão de que cometeu um erro? Não. Também é pela esperança de concretizarmos os nossos sonhos que vivemos cada dia, sejam eles pequenos, enormes, materiais ou espirituais... É por carregarmos connosco memórias de pessoas que passaram pela nossa vida, que nos sentimos acompanhados, parte de algo maior do que nós. É por relembrar momentos que vivemos, que descobrimos quem somos e o que queremos.
Não serão as Pontes mais um exemplo da tradição ocidental de considerar
perfeitos apenas os amores interrompidos por morte ou distância.
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